Que lugar tem a criança na prosa de Guimarães Rosa?
Em alguns contos, nos deparamos ainda com questões da passagem para a puberdade, do confronto entre vida e morte e entre infância e velhice. O que há de tão misterioso nessa nossa existência? Daí, Guimarães trata o sobrenatural como algo que faz parte da vida, da literatura, da infância, da arte. Num mesmo conto, ele inclui questões da infância, da morte, do sobrenatural, como elementos que fazem parte da vida.
E também podemos ler seus contos para discutir o que é a literatura infantil. Haveria, de fato, uma literatura destinada às crianças? Ou são os editores que preparam as obras com feições para os pequenos? O que seria mais relevante numa obra para crianças: o ponto de vista do narrador que respeite o olhar da infância? Ou o tratamento da língua, cheia de jogos de linguagem, de palavras? Ou a presença da personagem criança?
Contos como Fita verde no cabelo (Nova Fronteira, ilustrações Roger Mello, 1992 e Ave, palavra, Nova Fronteira) e “As margens da alegria”, “Os cimos” e “A menina de lá” (Primeiras estórias, Nova Fronteira, 2001) nos dão pistas para essa reflexão sobre a infância, sobre as passagens de diferentes etapas do desenvolvimento humano, sobre as produções culturais voltadas aos pequenos leitores. São obras com personagens crianças que vivenciam descobertas, perdas, mudanças, as dificuldades de entendimento de um mundo cheio de regras e valores adultos.
Em primeiro lugar, notamos como a criança em Guimarães tem voz e vez: é sujeito de suas ações. Em Fita verde no cabelo, temos uma menina que se depara com a velhice, com a partida da avó, com o mistério e inexplicável. A menina está em crescimento, vê a morte, atravessa o medo e o desconhecido.
Já em “A menina de lá”, a personagem franzina, miúda, econômica na comunicação, pressente acontecimentos, faz milagres. Na verdade, a menina prevê a própria morte. Isso é confirmado após a sua partida, que havia deixado como um desejo de ser enterrada em caixãozinho rosa com verdes funebrilhos. A perda da menina é reparada com o próprio milagre: o de Santa Nihinhinha.
Em “As margens da alegria”, passeamos e nos deslocamos com um menino que vai para a casa do tio na capital que está sendo construída, supostamente Brasília. A primeira vez que viajava de avião, estava sem a mãe, sentia medo, estranha o mundo grande. O menino se encanta por um peru, que acaba na mesa de refeição. Ele vive a alegria, a tristeza, a perda, o não entendimento das coisas ao seu redor.
Já em “Os cimos”, esse mesmo menino viaja para a capital, com a mãe adoentada e perde seu macaquinho bonequinho. Descobre, na natureza, o tucano, ave encantadora! Como num processo de amadurecimento e crescimento, o menino vive seus silêncios, seus assombros, seus fantasmas... Aprende a substituir o brinquedo perdido pelo pássaro recém admirado, o tucano.
Nas duas situações, o menino se depara com um mundo diferente, crescido, amplo, de coisas, pessoas e natureza exuberante. Com suas expressões coloquiais e neologismos, Guimarães usa uma linguagem bastante musical, com uma pontuação e ortografia peculiares às falas de pessoas do campo. Ele não ridiculariza o homem do campo, nem deprecia seus sentimentos, ele mostra como ali há uma sabedoria: de crenças populares, de sensibilidade da infância, da existência do sobrenatural em convivência com o mundo lógico e racional das relações. A prosa de Guimarães é para todos os leitores: crianças e adultos, cada um vai ler do tamanho que alcança suas metáforas, suas metamorfoses, suas mudanças, inclusive a da própria palavra, como matéria de salvação da nossa alma.