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segunda-feira, 9 de junho de 2014

Algumas palavras, alguns livros 23

Meu encontro com O Gato
                                            Ninfa Parreiras
Li O Gato pela primeira vez em 2011. Manhã de poucos ruídos. Estava organizando a coletânea Contos e poemas para ler na escola, para a editora Objetiva, a pedido do meu saudoso amigo Bartolomeu.
Ele abriu o computador e O Gato chegou miúdo, miava baixinho: história para ser publicada sozinha em livro, nas suas palavras. Lembro-me que era um texto metafórico, de muitas imagens e poucas palavras. Uma linha, muitas vidas. Um enamoramento de gato e lua. A vida a escorrer pelos fios da noite. A solidão a visitar rotineiramente aquele que compõe literatura.
Com a sua partida em janeiro de 2012, escaparam-me lembranças de seus textos inéditos. Quem parte, leva parte de nós. Mutilados, ficamos órfãos de palavras, inundados em silêncio indizível. Assim tem sido comigo.
Em contato com a família, procuramos no computador dele se havia textos inéditos que pudessem compor a obra Contos e poemas para ler na escola, ainda não acabada. Abrir aquele computador sem a presença do seu escritor doeu fundo.
Algo tão sagrado esperar que texto ia ser aberto, lido. Ou guardado em gavetas de dormir. Havia um ritual de lermos, conversarmos, silenciarmos. Um dia trazia às vezes um texto pequeno. Outras vezes, páginas e páginas em versos. E houve dias que ficávamos na prosa solta: comidas, temperos, viagens. Num tempo capturado em cumplicidade e olhares.
Com a ajuda da Juliana, tomamos coragem e descobrimos O Gato logo ali na área de trabalho, se oferecendo, miando para ser redescoberto. Reli o conto e percebia que havia ganhado algumas palavras e mantinha a polifonia escutada no primeiro encontro. Uma beleza de texto! Era uma despedida e eu só pude perceber isso depois que meu amigo partiu. Como nos cegamos ao dourado do outono, ao calor do verão... A cegueira pode ser boa companhia quando nos despedimos com dor de quem admiramos!
Maria Alexandre, das Paulinas, havia comentado comigo que o poeta a prometera um texto a ser publicado. Para fazer companhia ao A árvore. Seria O Gato? Muitas perguntas e longa ausência.
O texto foi para lá, aos cuidados da Goretti, publicado em  belas ilustrações de Anelise Zimmermann, projeto gráfico esmerado dela e do André Neves. Não sei se Bartolomeu virou uma estrela, não sei se nos lê de onde está. Não sei por onde anda. Sei que fiquei satisfeita em ver O Gato miando alto para os leitores e reforçando o lirismo e a delicadeza de uma obra imortal.


Capa: O Gato, Bartolomeu Campos de Queirós, ilustrações Anelise Zimmermann, editora Paulinas