A Poesia e Os Caminhos de ler
Ninfa Parreiras
A canção dos tamanquinhos
Troc… troc… troc… troc…
ligeirinhos,
ligeirinhos,
troc… troc… troc… troc…
vão
cantando os tamanquinhos…
Madrugada. Troc… troc…
pelas
portas dos vizinhos
vão
batendo, Troc… troc…
vão
cantando os tamanquinhos…
Chove. Troc… troc… troc…
no
silêncio dos caminhos
alagados,
troc… troc…
vão
cantando os tamanquinhos…
E
até mesmo, troc… troc…
os
que têm sedas e arminhos,
sonham,
troc… troc… troc…
com
seu par de tamanquinhos…
(Cecília Meireles, in Obra poética,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997)
Poema bom de ler, ouvir, repetir. Isso me alegrava.
Puro contentamento. Era algo simples. Gostava de, a cada vez, descobrir mais
coisas:
que os tamancos podiam cantar.
que os tamancos podiam bater às portas dos
vizinhos.
o silêncio e a solidão dos caminhos.
o barulho da chuva na pisada dos tamancos.
que os tamancos serviam para outra coisa além de
calçar os pés.
que os tamancos podiam ser para todas e todos, como
um livro em uma biblioteca.
que as coisas e os objetos tinham sons bonitos, na
Poesia.
que um tamanco podia estar num poema e ganhar um
lugar diferente.
que a repetição de sons e de palavras podia ter um
efeito estético legal.
que havia poemas que não eram sonetos (conhecia
sonetos lidos e declamados por meu pai, de poetas clássicos, Camões e
Shakespeare, e outros feitos por ele).
Descobrir a Poesia!
Sentir o cheio das ruas.
o chuá da chuva.
o cheiro do barro.
Sonhar também com um par de tamanquinhos. Fiquei
encantada pela sonoridade e pelo non sense. Podia sentir o gosto, o
cheiro, a espessura, o som, a imagem... Comecei a ler e escutar outros poemas em
versos livres da Cecília e de outros poetas. A Poesia não saiu mais da minha
vida. A palavra poética e a literatura me habitam. Nos textos que crio, os
versos chegam primeiro. Mesmo que seja um ensaio. Muitas vezes, preciso dos
versos para começar a criar e depois os subtraio dos textos.
Não foi menor o meu contentamento
quando conheci na adolescência:
Seiscentos e Sessenta e
Seis
A
vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos…
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente…
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos…
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente…
E
iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
(Mario Quintana, in Esconderijos do Tempo, 1980,
de Poesia completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005)
Gostei da casa que queria dizer tanta coisa,
inclusive a vida. Era bom pensar numa palavra que abarcasse tantos sentidos. (A
metáfora) A grande vida que enfrentamos todos os dias. Na adolescência, a gente
ganha formas indefinidas no corpo, na voz, na personalidade. Meio tronchos, os
jovens amarram casacos na cintura, nas costas. Deixam os cabelos crescer,
pintam, fazem tatuagens, colocam piercings. Há excessos e extravagâncias, haja
casas para colocar isso tudo.
A gradação do tempo: 6 horas, 6ª feira, 60 anos...
A repetição de quando nos revelando a
fugacidade do tempo, o quão passageira é a vida. E as contradições do tempo:
já, há, se.
A casca inútil é algo superficial, de fora, supérfluo.
Há uma gozação com o tempo inventado pelos homens. Com a própria poesia.
Quintana aborda aqui a vida, o tempo, a velhice, a morte, a memória e a poética.
Gosto do aspecto metapoético deste poema, que fala do
fazer poesia sem falar. Fala de uma perda desnecessária de tempo, para seguir
em frente com o fazer os versos. Deixar o extremamente necessário, enxugar a
poesia.
E me deleito com as imagens que surgem, que me
tomam de surpresa a cada vez que leio. É um poema contemporâneo, com um recado
para o que vivemos (a falta de tempo), e, ao mesmo tempo, tem uma carga de
espiritualidade belíssima.
Como psicanalista, nos textos e trabalhos clínicos,
os versos chegam para abrir a página. Meus primeiros rascunhos. Interesso-me
pelo ritmo da fala de um paciente. Por vezes, traz uma dor, algo indizível, sem
linguagem verbal. Na sonoridade da sua fala, do seu silêncio, do seu gestual,
do seu franzir de testa, do seu piscar de olhos, escapa a música do sofrimento.
É aí que vou escutar, dar um contorno, um holding. Sua queixa e seus sintomas
surgem na música do que me conta: silenciosa, chorosa, melancólica, gritona,
apagada, repetitiva, indefinida, dubitativa, amedrontada...
Cada pessoa tem sua música na fala e a Poesia é o
arranjo cuidadoso e bem acabado disso. Quando você junta palavras e prima pela
beleza, pela combinação delas na construção de imagens, você faz Poesia. É a
primeira forma, o primeiro gênero literário. A mãe de toda a literatura, a que
embala o bebê, o faz dormir. A que consola os desesperados.
A Poesia costuma ser lida e passada adiante em duas
situações principais da vida: a morte e a paixão desmedida. Reparem quando
alguém morre: as pessoas enviam, postam, escrevem versos ou poemas de autores
consagrados e desconhecidos.
Quando alguém está profundamente apaixonado, gosta
de enviar versos. Só a Poesia dá conta da perda e da paixão, duas coisas que
não sabemos explicar. Nem nomear.
A Poesia me
acompanha na leitura de romances, ensaios, contos... Sempre vai comigo. Quando
conheci a obra de Bartolomeu Campos de Queirós, uma das coisas que me encantou
é que ele abre cada texto com versos, epígrafes (na maioria das vezes, de
autoria dele). Isso me prepara para a leitura.
Aprecio o conceito de poesia do Erza Pound, grande
poeta norte-americano, de que o poema deve reproduzir a ordem natural da
sintaxe de uma língua (falada) e não afastar-se demais da música ou da própria
língua falada, já que o poema deve soar natural ao ouvido se for lido em voz
alta. A poesia de cordel é assim: reproduz nos versos
a música da fala.Pound falava em diferentes maneiras de escrever
dos poetas:
- uma ligada às qualidades
sonoras da poesia (melopeia)
- outra às qualidades
representativas sensoriais-imagéticas, especialmente visuais (fanopeia),
- e outra ligada ao jogo
semântico, nomeada por ele de a dança das
ideias (logopeia)
Bom pensar a
poesia com idéias, sons/musicalidade e sensações/imagens.
Organizo um sarau, em Santa Teresa, no Rio, a
Poesia no Parque. Temos umas 20 pessoas voluntárias que se mantem na leitura
dos poemas. Um grupo de escritores, ilustradores, contadores de histórias.
Nunca faltam leitores e, cada vez mais, a Poesia aproxima, faz encontros,
laços.
O que será que a Poesia diz a essas pessoas que a leem
e a escutam? Convidada pelo SESC de algumas cidades (Paraty, Vitória,
Canoinhas, São Bento do Sul, Rio Branco) para ministrar uma oficina de Poesia tenho
me surpreendido. Em Paraty, houve fila e discussão na porta no primeiro dia. As
quinze vagas foram preenchidas antes de começar a Festa Literária. Muita gente
queria fazer a oficina. Em Vitória, eram mais de trinta inscritos e muitos
deles profissionais com trabalhos publicados. Bom saber que há muitos que
querem escrever, ler e estudar os versos.
Ministro uma aula de Poesia para professores do município
do Rio de Janeiro no curso Jovens leitores (organizado pela Fundação Nacional
do Livro Infantil e Juvenil), há alguns anos. A maioria dos participantes diz não
gostar ou não entender a Poesia. Quando começamos a ler, brincar com palavras
em exercícios despretensiosos, eles se soltam. Saem satisfeitos com as leituras
que fazemos e com as escritas que experimentamos.
No Rio, estava em cartaz, em 2014, uma vez por mês,
agosto, setembro, outubro e novembro, a aula com Antonio Cícero, A Poesia.
Auditório cheio em todas as apresentações. E o que ele faz é ler e comentar
poemas dos poetas consagrados e dele.
Neste mundo tão cheio de adversidades, só mesmo a
Poesia para desarmar e fazer amar.