Margeia o mar,
poesia marginal
Ninfa Parreiras
Seja marginal
Seja herói
Helio Oiticica
De muitas margens é feita a nossa vida. De tantas margens, a literatura. Na Poesia,
a terceira margem reúne a musicalidade, o poder da imagem visual e a combinação
de forma/conteúdo (a estética). São a melopeia, a fanopeia e a logopeia,
definidas, por Erza Pound, como modos retóricos para a linguagem poética. Essa
terceira margem habita um universo subjetivo, além de fronteiras e de cânones.
A metáfora da existência, sem sentidos, sem explicações, sem racionalidades. A
que vem do mundo ilógico, puro nonsense.
Estranha no primeiro olhar, ela é estrangeira. Encanta, desconcerta. São falas
de dentro para fora. Viscerais.
Tenho uma estreita afinidade com a linguagem marginal, seja a de um Grande
Sertão: Veredas, seja a palavra cantada da poesia periférica, seja a dos
cordeis. Poetrix, aldravias, invenções e reinvenções de formas: tudo isso entra
na minha cesta de preferências poéticas. A economia de palavras, a condensação
de imagens e a linguagem polissêmica: bom demais!
Há pouco, tomei um livro emprestado, Antologia Poética de Vinicius de
Moraes, Editora do Autor, autografado para a Condessa Pereira Carneiro, avó
da amiga Maria Teresa. Veio com uma dedicatória de 1960, caligrafia do Poetinha
e os poemas, antes (?) marginais.
A morte
A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.
p. 114 (Antologia poética de Vinícius de Moraes. Rio
de Janeiro: Editora do Autor, 1960)
Fala fundo cada verso deste poema. Fala hoje, de hoje, para amanhã. Fiquei
afagando as páginas amareladas do livro, reparando as costuras, os cortes à mão
das folhas e as manchas. O papel, a impressão: tudo me revela um lado
marginalizado da poesia. Ela se posiciona contra o já estabelecido e inaugura
um modo de ser. Os poemas, agora clássicos. Parece que a marginalidade de um
texto está apegada ao tempo. A poesia seria marginal quando nasce? Das bordas
para o centro?
Quando cheguei ao Rio, estudante de Letras, escutei falar de poetas que em
Minas eu não conhecia. Chegaram para mim esparsos, não necessariamente na ordem
em que aqui estão. Os cinco me marcaram e posteriormente me alegrei em tê-los
reunidos em um livro da editora Ática. Tocavam fundo em mim. Coisas sem muita
explicação.
Ana Cristina Cesar vinha com uma intimidade assim surpreendente. Era a Ana Cristina
C, uma coisa muito carioca para os meus ouvidos. Parecia que a gente estava no
quarto com ela lendo os poemas, as cartas, os diários. Ela havia partido há
alguns anos, mas continuava ali, viva. Era um entrar nos rascunhos, no fazer,
algo na pele do papel, no esqueleto da tinta e do lápis. E também certo
atrevimento com a escrita:
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
p 19
Ela escrevia coisas que eu imaginava pensadas, não escritas. Parecia que
eu lia escondida os seus versos. Meus sentimentos eram traduzidos ali sem
conjunções. A identidade, o acaso, a tentativa de um
descobrir-se:
Poema óbvio
Não sou idêntica a mim mesmo
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob
[o mesmo ponto de vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante
Não sou idêntica a mim mesmo
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob
[o mesmo ponto de vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante
p 172
definição
poeta é onda
onda é canto
canto é espera
espera é adeus
adeus é morte
morte é nódoa
nódoa é ostra
ostra é ensaio
ensaio é busca
busca é poeira
poeira é poeta.
onda é canto
canto é espera
espera é adeus
adeus é morte
morte é nódoa
nódoa é ostra
ostra é ensaio
ensaio é busca
busca é poeira
poeira é poeta.
Anos 1960/1970
p 406 (Póetica. São Paulo: Companhia das Letras,
2013)
Veio o Cacaso, com uma coisa gostosa das lembranças. Brincava com os sons, a
polissemia. De uma delicadeza poética. Um desdobrar-se, em segredos e
intimidades, sentimentos que não damos conta de entender. Sua vida, breve como
sua poesia. Ele punha uma memória afetiva nos versos. Amor e humor juntos. Um
sopro lírico:
Se o porco é espinho
caço e asso
se o corpo é sozinho
traço e passo
p 22
Álgebra elementar
Perder um amor é muito duro.
perder dois é bem menos.
p 26 (Poesia marginal. São Paulo:
Ática, 2006)
E o Leminski? Sua poesia trazia formas concisas, a precisão. E desenhos,
imagens feitas com / de palavras. De vocabulário comum, parecia ir fundo no
avesso e nas roupas das palavras. Revestia-as de beleza sonora, de uns cem
números de sentidos. Irreverência e uma surpresa a cada verso. A poesia dele
nascia a cada leitura.
esta
vida é uma viagem
pena eu estar
só de
passagem
p 313
de som a som
ensino o silêncio
a ser sibilino
de sino em sino
o silêncio ao som
ensino
p 149 (Toda poesia. São Paulo: Companhia
das Letras, 2013)
Com
o Chacal, vinha uma poesia irônica, irreverente e pop, seus versos chegavam a
me desconcertar. Dava vontade de ler de novo. E de trás para frente. De novo.
Uma velocidade musical. Falava de poesia associada às coisas mais banais.
Rápido e rasteiro
vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro, tiro o sapato
e danço o resto da vida
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro, tiro o sapato
e danço o resto da vida
p 353 (Belvedere. São Paulo: CosacNaify,
2007)
Papagaio
Estranho o poder do poeta
escolhe entre quase e cais
quais palavras lhe convêm.
depois as empilha papagaio
e as solta no céu do papel
p 34 (Poesia marginal. São Paulo:
Ática, 2006)
E o Francisco Alvim. Seus versos eram um painel da sociedade da época. Um brincar
com palavras. Um falar, desfalar, desfolhar, o olhar lírico sempre presente.
Discordância
Dizem que quem cala consente
eu por mim
quando calo dissinto
quando falo minto
p 49 (Poesia
marginal. São Paulo: Ática, 2006)
Eu achava que todo esse povo da poesia era carioca, porque chegaram para mim
junto com a descoberta das coisas do Rio: a informalidade, a musicalidade, as
gírias, a escrita feita como a fala, o uso de minúsculas. Isso foi na PUC, no
curso de Letras. Comecei a ler esses poetas em papeis colados nos murais por
não sei quem, ora mimeografados, ora xerocados. Junto com anúncios de aulas particulares,
redação de monografias, revisão de textos, os poemas estavam lá. Gostava de
circular silenciosa pelos corredores e descobrir os poetas que chegavam nas
paredes. Foram meus primeiros colegas na faculdade. Pareciam anunciar algo, mas
também gritar pela liberdade. Eu não entendia aquele movimento, mas gostava
daquilo.
Tinha uma reprodução direta da fala, sem exageros, nem rebuscamentos. Mais
tarde, soube das edições artesanais que fizeram, da geração mimeógrafo. Uma
poesia na contra ordem: a letra minúscula para iniciar o verso. Isso não
funcionaria hoje numa digitação no computador. Briguei com o teclado para
copiar aqui os poemas iniciados por minúsculas.
Além
disso, o fazer nascer o poema escrito à mão. Como seria isso hoje? Gosto da
ideia desse feito à mão, como o livro homônimo da Lygia Bojunga, que assim fez
pelos idos de 1996, em prosa. Foi tão bacana que se transformou depois num
impresso! Teria sido marginal quando artesanalmente criou alguns exemplares?
É bom reparar o modo de se comunicar das pessoas. As idiossincrasias na
linguagem. A Nazir trabalha na casa da amiga Glória, em Porto Velho, RO, há
alguns anos. Vejam como ela nos recebia para uma refeição:
chupar laranja
pensando na lima
engolir os caroço da tangerina
e já completou a rima
fazer cachorro quente
pra comer e quebrar o dente
é sinal
que vai dar muita gente
é dureza
casar com a Maria
sustentar a Teresa
que tem a perna tesa
e não sabe arrumar uma mesa
só sabe dar despesa
Isso fazia com que as crianças comessem o que fosse posto na mesa, fosse lá um
prato típico do norte. Os peixes, os legumes, as ervas. Tudo fazia sucesso. Na
verdade, a Nazir fazia sucesso. Um dia, minha filha, com uns oito anos,
observou: Mãe, o que ela faz é que nem a Cecília do Ou isto ou aquilo que você me diz pra ler. Só que ela não
é famosa. Seria poesia marginal o que cria a Nazir?
Gosto de escrever em folhas caídas das árvores. Páginas prontas para receber a
escrita, com as manchas, os fungos, os ferrugens, os alto-relevos, as
irregularidades. A escrita nasce neste terreno adubado de memórias vegetais.
Nasce de modo diverso, sem computador, sem papel branco. Seria marginal? A
palavra além de si mesma. O verso brotando da terra. Raízes poéticas.