Cinzas e Letras
Ninfa Parreiras
Um
fogão de lenha de paredes avermelhadas foi o papel onde escrevi as primeiras
letras. Brincava de ser professora com as bonecas e a turma da rua. Enquanto
minha mãe banhava o fundo das panelas em riscos indecifráveis, eu experimentava
a cinza molhada em figuras e letras. Por que aquela curiosidade com as palavras?
Com
os sons trazidos pela brincadeira de juntar uma letra com a outra. Com a
textura do resto de lenha. Por que escrever em paredes que estavam quase sempre
aquecidas?
Aquele
fogão era um tapete mágico onde escutávamos histórias e casos. Dali presenciava
o fazer doces, o sapecar o frango, o transformar o leitão em comida para o mês.
Lugar da fome e da satisfação, da água aquecida para o banho, do estalar da
madeira, do ajuntamento das pessoas. O que fazer com as cinzas?
Minha
casa era um livro de histórias: um entra e sai de gente com um dizer das
colheitas, dos animais, das pessoas que partiam, das assombrações, da roça.
Vinham queijos, roscas. Iam biscoitos, doces. Meu pai nasceu em uma fazenda na
pequena Crucilândia e minha mãe num sítio na Serra Azul. Foram morar na cidade maior
e se conheceram. A vida rural os visitava com queixas, festejos, casos, choros,
carroças. Minha imaginação foi regada por aqueles falatórios e silêncios que
atravessavam conversas sem fim.
Meu
pai lia para os sete filhos: sonetos, prosas, verbetes de dicionários e
história do Brasil e do mundo. Em voz alta, chegavam notícias de jornal e
textos do Antigo Testamento. Minha mãe falava por gestos, piscar de olhos,
franzir de testa, emudecer-se ao longo da tarde, proteger o fundo das panelas
com a lama da lenha queimada. Sem perceber, aprendíamos a linguagem dos
sentimentos. Minha avó paterna adorava contar casos de gente aparecida e
desaparecida. Gente que voltava de outra vida.
Tive
uma predileção por ler jornais que vinham como embrulho de carnes, verduras,
sapatos e objetos retornados das oficinas de consertos. Os jornais tinham
serventia variada para saber o que acontecia em outras terras. Quando já circulava
pelas ruas da cidade, com pouco mais de oito anos, frequentava a biblioteca
pública e lia livros de autores brasileiros e traduzidos. Lembro-me da ida à
biblioteca como algo da mais alta importância. Uma conquista! Visitar sozinha o
Sítio do Pica-pau Amarelo... Algumas professoras sugeriam livros
e autores. Férias era tempo para leituras longas e caderno cheio de
composições.
Ser
escritora não fazia parte dos meus sonhos. Queria ser professora. Quem sabe,
médica. E escrever. Não vinculava o escrever ao ser escritora. Para mim,
escrever foi e é uma prática de liberdade: guardar os segredos no papel, dar
conta das fantasias e compartilhar textos com pessoas amadas. A escrita nasce
como necessidade de elaborar as leituras.
Na
faculdade de letras, estagiei na Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil,
onde trabalhei por 20 anos. Foi uma escola de vida, leituras, livros, obras
brasileiras e estrangeiras. Ler era parte do trabalho e me fazia companhia. Fui
estudar psicologia e psicanálise, pensava que a literatura ia ficar de lado, me
dedicaria exclusivamente à clínica. Engano meu!
A
literatura faz parte da minha vida, dos atendimentos clínicos, dos estudos da
subjetividade. Não que a psicanálise me sirva como instrumento de leitura literária.
Na verdade, a literatura me ajuda a entender as pessoas, a escutar o outro. Ela
é o estranho que não sai do mundo interno. É minha loucura.
Tenho
trabalhos diferentes com a leitura, a literatura, a psicanálise... Transito
nesses territórios como uma estrangeira, ao pisar letras desconhecidas a serem
descobertas e desenhadas com cinzas. Ora escuto, ora leio, ora escrevo, num
exercício que me alimenta de desejos.
Caminhos,
mergulhos, fotografias. Em algum momento, chegam palavras, repousam silêncios.
Cinzas. O que fazer com isso?
Para o painel do Movimento por Um Brasil Literário – MBL, FLIP
2013, Paraty, juntamente com Flávia Tebaldi, Ricardo Azevedo, Ricardo Ramos Filho e Volnei Canonica
leia no site do MBL:
fotos: arquivo pessoal, fogão de lenha em Minas Gerais, verão 2008