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quinta-feira, 15 de abril de 2021

O Quarto dos Horrores

                          O Quarto dos Horrores

Ninfa Parreiras

Ei, você, já reparou uma criança brincando? Criança saudável dorme, se alimenta. Ela interage com as pessoas e com os brinquedos. Sorri, arquiteta coisas, cria fantasias. Inventa modas!

Uma mãe, um pai ou a pessoa que cuida da criança pode perceber quando há sofrimento emocional. Quando ela não consegue dormir ao longo de noites. Fica agitada, com insônia, não está tranquila. Quando se alimenta em excesso e passa mal em repetidas situações. Quando não quer comer e faz recusa mais de uma vez. Faz birra. Quando está triste, não sorri, não se comunica. Ou fica agitada demais por muitas vezes.

Uma criança com medo, assustada, precisa ser observada e acolhida. Ela pode dar sinais. Alguns verbais: falas, balbucios, choros, gritos. Ela literalmente diz que não gosta de uma pessoa, não quer ir a algum lugar que a traz desconforto. Alguns sinais não verbais: olhos secos, olheiras, mutismo, alergias, dores, tristeza, tremores, sonolência ou insônia, dificuldade para se divertir, mudança na rotina alimentar, fadiga, queixas físicas, irritabilidade, lentidão de movimentos, voz monótona e monocórdica, gagueira, agitação psicomotora, hiperatividade e descontrole dos sentimentos. Atenção, adultos, a lista é grande e longa!

Quando a criança fala dos incômodos e do mal-estar, está conseguindo verbalizar suas insatisfações. Henry Borel falava de incômodos: pedia para não ficar com o namorado da mãe; pedia para não permanecer naquele espaço assustador - o “quarto dos horrores”.

Uma mãe (um pai) precisa ter olhos de ouvir, precisa ter ouvidos de ver. Sua mão deve reconhecer feridas, marcas, hematomas. Deve sentir as recusas. Farejar e lamber sua cria de forma zelosa.

Se a criança não consegue falar e tem sofrimento psíquico, o olhar sobre ela deve ser redobrado. Precisamos estar atentos ao que ela produz de brincadeiras, sonhos e sintomas.

Quando recebo crianças para atendimento no consultório, a gente brinca, com bonecos (de pano). Eles permitem livres associações para as brincadeiras. A gente lida com pequenos objetos, desenhos, traçados, jogos (como dama, dominó). A gente inventa e dramatiza cenas e histórias curtas, com palavras, com desenhos, com brinquedos. Assim, a criança deixa escapar indícios de sofrimentos e suas dificuldades em nomear o que a perturba. Ao brincar, a criança mostra suas fragilidades e angústias. O trabalho de elaboração se dá para que ela consiga falar, nomear o estranho, vencer o medo. Enfrentar os fantasmas, que podem ser fantasias (coisas imaginadas), mas podem ser reais (pessoas cruéis). A gente faz modelagem com argila. A criança molda coisas que nem ela sabia que existiam: criaturas absolutamente horrorosas. Pinta os objetos modelados, depois eles vão ganhar vida em cenas montadas, de acordo à invenção dela. 

Atenção, famílias, ao Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA:

Art. 4º: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm acesso em abril de 2021

            A criança é um ser do presente, não do futuro. Não é um vir a ser. Ela vive uma infância única, somente dela, porque há muitas infâncias em muitas partes. Ela carece de cuidados e de respeito, hoje.

Na literatura infantil, temos exemplos de inúmeros livros que abordam a relação do/a filho/a com a mãe; e com o pai. Tomei emprestados 2 livros da infância dos meus filhos que me ocorrem agora comentar. Não paro de pensar em Henry Borel!

O livro Mamãe Zangada, da alemã Jutta Bauer (texto e ilustração), tradução de Irene Fehrmann, publicado no Brasil pela CosacNaify, em 2008. Mostra o grito de uma mãe-pinguim. E o despedaçamento que acontece com o filhote, pelos quatro cantos do mundo:

“Minha cabeça voou para o universo. Meu corpo afundou no mar. (...) Minhas patas ficaram paradas, mas de repente se puseram a correr e correr. (...) Era a mamãe zangada, que tinha recolhido e costurado todos os meus pedaços.”

Ilustrações e texto narram os danos das indelicadezas e das brutalidades do mundo adulto na relação vertical com as crianças. As fragmentações na linguagem das palavras e das imagens. Trazem a “reparação” afetiva da mãe e o pedido de desculpas ao filhote. Por meio de metáforas e de metonímias, a autora fala de violência na infância e de cuidados. Premiada com a Medalha Hans Christian Andersen do International Board on Books for Young People (IBBY), em 2010, é uma das mais respeitadas artistas do mundo.

Outro livro é Adivinha quanto eu te amo, do irlandês Sam McBratney, ilustração Anita Jeram, tradução de Fernando Nuno, publicado no Brasil pela Martins Fontes, em 1996. Aqui, há uma declaração de amor entre filhote e pai. O pequeno tenta traduzir o amor que sente pelo paizão. E o pai segue uma série de brincadeiras verbais na tentativa de “medirem” o quanto cada um ama o outro. Originalmente publicado como Guess how I love you, já vendeu mais de 30 milhões de cópias e está traduzido em mais de 50 países. A obra foi adaptada para desenho animado e é lida no mundo todo por infâncias de todas as idades. Há em edição pop up (livro brinquedo) para bebês. Reparem um trecho:

“Ele queria ter certeza de que o Coelho Pai estava ouvindo.

- Adivinha quanto eu te amo – disse ele.

- Ah, acho que isso eu não consigo adivinhar – respondeu o Coelho Pai.”

            Nos diálogos e no jogo lúdico de palavras, de troca de olhares, os personagens lidam com o amor, a afetividade e o respeito. A narrativa, de texto e de ilustrações, faz com que os leitores se sintam amados e queridos. Como as crianças precisam se sentir amadas!

Quando faltam palavras ou explicação, como esse “quarto de horrores”, costumo me refugiar na literatura ou em outras artes. Queria ter lido essas duas histórias para o Henry e para as crianças desamparadas. Fica aqui a dica para as infâncias.

No artigo Uma criança é espancada - uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais” (1919), Freud trabalhou com as fantasias infantis em relação ao espancamento feito pelos pais nelas ou em irmãos. Nos seus estudos, mostrou que as fantasias de espancamento não eram realidade. Nosso tempo não pode ficar na “fantasia do espancamento” de 1919!

Em 2021, Henry foi fisicamente violentado pelo Sr Jairinho, com a cumplicidade de Monique, mãe do menino. E quantas crianças seguem machucadas, abusadas e caladas! Vamos dar voz e acolher as dores dessas crianças! Vamos nos refugiar na literatura!

   (Imagens: capas dos livros mencionados e comentados, podem ser adquiridos em livrarias físicas e vistuais)