O Quarto dos Horrores
Ninfa Parreiras
Ei, você, já reparou uma
criança brincando? Criança saudável dorme, se alimenta. Ela interage com as
pessoas e com os brinquedos. Sorri, arquiteta coisas, cria fantasias. Inventa
modas!
Uma mãe, um pai ou a pessoa
que cuida da criança pode perceber quando há sofrimento emocional. Quando ela não
consegue dormir ao longo de noites. Fica agitada, com insônia, não está
tranquila. Quando se alimenta em excesso e passa mal em repetidas situações. Quando
não quer comer e faz recusa mais de uma vez. Faz birra. Quando está triste, não
sorri, não se comunica. Ou fica agitada demais por muitas vezes.
Uma criança com medo, assustada,
precisa ser observada e acolhida. Ela pode dar sinais. Alguns verbais: falas,
balbucios, choros, gritos. Ela literalmente diz que não gosta de uma pessoa,
não quer ir a algum lugar que a traz desconforto. Alguns sinais não verbais:
olhos secos, olheiras, mutismo, alergias, dores, tristeza, tremores, sonolência
ou insônia, dificuldade para se divertir, mudança na rotina alimentar, fadiga,
queixas físicas, irritabilidade, lentidão de movimentos, voz monótona e
monocórdica, gagueira, agitação psicomotora, hiperatividade e descontrole dos
sentimentos. Atenção, adultos, a lista é grande e longa!
Quando a criança fala
dos incômodos e do mal-estar, está conseguindo verbalizar suas insatisfações. Henry
Borel falava de incômodos: pedia para não ficar com o namorado da mãe; pedia
para não permanecer naquele espaço assustador - o “quarto dos horrores”.
Uma mãe (um pai) precisa
ter olhos de ouvir, precisa ter ouvidos de ver. Sua mão deve reconhecer
feridas, marcas, hematomas. Deve sentir as recusas. Farejar e lamber sua cria de
forma zelosa.
Se a criança não
consegue falar e tem sofrimento psíquico, o olhar sobre ela deve ser redobrado.
Precisamos estar atentos ao que ela produz de brincadeiras, sonhos e sintomas.
Quando recebo crianças
para atendimento no consultório, a gente brinca, com bonecos (de pano). Eles permitem
livres associações para as brincadeiras. A gente lida com pequenos objetos, desenhos,
traçados, jogos (como dama, dominó). A gente inventa e dramatiza cenas e
histórias curtas, com palavras, com desenhos, com brinquedos. Assim, a criança
deixa escapar indícios de sofrimentos e suas dificuldades em nomear o que a
perturba. Ao brincar, a criança mostra suas fragilidades e angústias. O trabalho
de elaboração se dá para que ela consiga falar, nomear o estranho, vencer o
medo. Enfrentar os fantasmas, que podem ser fantasias (coisas imaginadas), mas
podem ser reais (pessoas cruéis). A gente faz modelagem com argila. A criança molda
coisas que nem ela sabia que existiam: criaturas absolutamente horrorosas. Pinta
os objetos modelados, depois eles vão ganhar vida em cenas montadas, de acordo
à invenção dela.
Atenção, famílias, ao Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA:
Art. 4º: É dever da família, da
comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
acesso em abril de 2021
A criança é um ser do presente, não do futuro. Não é um
vir a ser. Ela vive uma infância única, somente dela, porque há muitas
infâncias em muitas partes. Ela carece de cuidados e de respeito, hoje.
Na literatura infantil,
temos exemplos de inúmeros livros que abordam a relação do/a filho/a com a mãe;
e com o pai. Tomei emprestados 2 livros da infância dos meus filhos que me
ocorrem agora comentar. Não paro de pensar em Henry Borel!
O livro Mamãe Zangada,
da alemã Jutta Bauer (texto e ilustração), tradução de Irene Fehrmann, publicado
no Brasil pela CosacNaify, em 2008. Mostra o grito de uma mãe-pinguim. E o
despedaçamento que acontece com o filhote, pelos quatro cantos do mundo:
“Minha cabeça voou para
o universo. Meu corpo afundou no mar. (...) Minhas patas ficaram paradas, mas
de repente se puseram a correr e correr. (...) Era a mamãe zangada, que tinha
recolhido e costurado todos os meus pedaços.”
Ilustrações e texto narram
os danos das indelicadezas e das brutalidades do mundo adulto na relação
vertical com as crianças. As fragmentações na linguagem das palavras e das
imagens. Trazem a “reparação” afetiva da mãe e o pedido de desculpas ao
filhote. Por meio de metáforas e de metonímias, a autora fala de violência na
infância e de cuidados. Premiada com a Medalha Hans Christian Andersen do International
Board on Books for Young People (IBBY), em 2010, é uma das mais respeitadas artistas
do mundo.
Outro livro é Adivinha
quanto eu te amo, do irlandês Sam McBratney, ilustração Anita Jeram, tradução
de Fernando Nuno, publicado no Brasil pela Martins Fontes, em 1996. Aqui, há
uma declaração de amor entre filhote e pai. O pequeno tenta traduzir o amor que
sente pelo paizão. E o pai segue uma série de brincadeiras verbais na tentativa
de “medirem” o quanto cada um ama o outro. Originalmente publicado como Guess
how I love you, já vendeu mais de 30 milhões de cópias e está traduzido em
mais de 50 países. A obra foi adaptada para desenho animado e é lida no mundo
todo por infâncias de todas as idades. Há em edição pop up (livro brinquedo)
para bebês. Reparem um trecho:
“Ele queria ter certeza de
que o Coelho Pai estava ouvindo.
- Adivinha quanto eu te
amo – disse ele.
- Ah, acho que isso eu
não consigo adivinhar – respondeu o Coelho Pai.”
Nos diálogos e no jogo lúdico de palavras, de troca de
olhares, os personagens lidam com o amor, a afetividade e o respeito. A narrativa,
de texto e de ilustrações, faz com que os leitores se sintam amados e queridos.
Como as crianças precisam se sentir amadas!
Quando faltam palavras
ou explicação, como esse “quarto de horrores”, costumo me refugiar na literatura
ou em outras artes. Queria ter lido essas duas histórias para o Henry e para as
crianças desamparadas. Fica aqui a dica para as infâncias.
No artigo “Uma
criança é espancada - uma contribuição ao estudo da origem das perversões
sexuais” (1919), Freud trabalhou com as fantasias infantis em relação
ao espancamento feito pelos pais nelas ou em irmãos. Nos seus estudos, mostrou que
as fantasias de espancamento não eram realidade. Nosso tempo não pode ficar na “fantasia
do espancamento” de 1919!
Em 2021, Henry foi fisicamente
violentado pelo Sr Jairinho, com a cumplicidade de Monique, mãe do menino. E quantas
crianças seguem machucadas, abusadas e caladas! Vamos dar voz e acolher as dores
dessas crianças! Vamos nos refugiar na literatura!
(Imagens: capas dos livros mencionados e comentados, podem ser adquiridos em livrarias físicas e vistuais)