Ninfa Parreiras
De volta para casa, numa
noite de sexta-feira, a Rua Gomes Carneiro acolhia
gente de cara assustada, de cochichos, de olhar interrogativo.
Cruzei com um automóvel nervoso da
Polícia Civil, com outro estacionado da Defesa Civil. Homens carregavam um
cadáver enrolado como um fardo em uma espécie de coxo de plástico. Em segundos,
meu olhar fotografou uma morte misteriosa, pessoas que saíam de bares, de
prédios. Por que a morte assusta? Faz juntar gente? Comentários e conversas
inconclusas... Por que a morte existe como algo que não nos acomete? Como algo
alheio e do acaso? A morte existe no outro, do lado de lá.
Pensei
na ilha de Poveglia, perto de Veneza, conhecida como Ilha dos Mortos. A Itália
a colocou a venda recentemente, abandonada há décadas. Lá, na Idade Média,
cerca de 160 mil pessoas foram queimadas e soterradas, vítimas de pragas
incontroláveis que assolavam Veneza. Séculos mais tarde, abrigou um manicômio e
um médico torturava pacientes ao pesquisar a cura para as doenças da mente. Há
caminhos cobertos de ossos entre ruínas. O que fazer com Poveglia?
Tudo
isso nos aponta a dificuldade nossa em lidar com os mortos. Com a nossa própria
morte. Na minha infância, o falecido dentro do caixão ocupava a mesa mais
extensa da casa, na copa ou na sala de jantar. Era velado ali, entre bules de
café, pedaços de queijo fresco e biscoitos de polvilho. As crianças abanavam os
mosquitos que se aproximavam da renda roxa ou negra que cobria o defunto. Nos
dias seguintes, a copa voltava a servir as refeições da família e o morto
ocupava seu lugar no cemitério.
Gráficas da cidade imprimiam
um aviso fúnebre a ser distribuído de mão em mão, também pelas crianças. A vida
e a morte andavam juntas, de mãos dadas, como de fato estão postas para todos:
são as duas coisas que experimentamos em situação de igualdade: nascer e
morrer.
Nas cidades grandes, velar
um morto demanda tempo, segurança (há assaltos aos velórios) e custa caro e esse
momento de despedida tem sido reduzido a breves horas. As pessoas pouco têm
tempo para fazer seus rituais, tão necessários para elaborarmos as perdas e as
mudanças que vivemos. Será que podemos viver para sempre? O que fazer com
Poveglia e com os mortos? Ou: o que fazer para agregar a morte à vida?
fotografia: arquivo pessoal, Veneza, inverno 2013